Síndrome de Don Juan: seduzir, conquistar, abandonar
- Lúcia da Costa Soares
- 18 de nov. de 2015
- 6 min de leitura

Don Juan pode ser considerado uma criação da História e da Literatura Universais, pese embora a sua origem, como personagem arquetípico, decorra da literatura espanhola.
Se recuarmos aos tempos da Antiga Grécia, vemos como alguns deuses, especialmente o grande Zeus, podiam facilmente aspirar ao título de Don Juan, dado que nas suas aventuras amorosas pelo Olimpo se podiam encontrar episódios de seduções várias, raptos e excessos amorosos e sensuais.
No entanto, foi na Idade Média, na severa e repressiva Corte Espanhola, que Don Juan surge numa criação literária através da pena do dramaturgo espanhol Tirso de Molina, (por volta de 1617), «O conquistador de Sevilha e o convidado de pedra». O enredo deste conto decorre em Sevilha e Don Juan surge como um mulherengo inveterado, que seduzia as mulheres prometendo-lhes casamento, deixando em seguida, atrás de si, um rasto de corações despedaçados. Acaba por seduzir a filha de Don Gonzalo, chefe militar local, o qual posteriormente assassina. Possuído pela soberba, Don Juan vai ao cemitério e perante a sepultura de Don Gonzalo, convida cinicamente a sua estátua funerária para jantar. A estátua ganha vida, assiste ao banquete e devolve-lhe o convite, pedindo em seguida para lhe apertar a mão. Quando Don Juan estende o braço é arrastado pela estátua até ao Inferno.
O que curiosamente se perpetuou desta obra, convertendo-a num clássico mundialmente conhecido, não foi a sua moral judaico-cristã (com a crença na inevitabilidade da prestação de contas a Deus e no pagamento dos pecados cometidos), dado que Tirso de Molina era o pseudónimo de Frei Gabriel Téllez, e a obra foi escrita no tempo da Contra-Reforma promovida pela Igreja Católica, tendo como principal expoente a Santa Inquisição, mas sim a sensualidade e a sedução destacadas como traços da sua personagem principal. Assim, Don Juan representa a rutura absoluta com as normas pré-estabelecidas vigentes: a moral da Igreja e a justiça dos homens deixam de ter valor, unicamente a vida como um jogo e um divertimento têm sentido.
Uma versão posterior da lenda de Don Juan foi apresentada na obra do poeta e dramaturgo espanhol, José Zorrilla, de 1844, Don Juan Tenorio.
No romance do escritor francês Gaston Leroux, O Fantasma da Ópera, de 1911, a ópera que o Fantasma está a escrever no enredo, nas catacumbas da Ópera de Paris, é Don Juan Triunfante.
O escritor português Almeida Faria escreveu em 1990, e em tom surrealista bem-humorado, O Conquistador e José Saramago, em 2005, deu a sua versão moderna para o mito, na obra Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido, onde humaniza o mito.
Além de personagem recorrente na literatura, a figura de Don Juan surge também em peças de teatro e em variados poemas, nos quais se relata e descreve a sua personagem de sedutor e libertino. Aliás, a popularidade de Don Juan aumentou consideravelmente a partir da ópera de Mozart, Don Giovanni (1787), com libreto de Lorenzo da Ponte.
No poema satírico de Lord Byron, o mito passa por uma transformação radical, passando Don Juan de vilão a apaixonado eterno, que vive e morre para e pelo amor. Foi esta versão de Byron que em 1995 foi adaptada para a sétima arte, através do filme Don Juan De Marco, com a chancela de Hollywood, escrito e dirigido por Jeremy Leven, tendo Johnny Depp e Marlon Brando nos principais papéis.
No divã com Don Juan
O Donjuanismo é um protótipo particular de comportamento humano classificado particularmente pelos valores culturais e morais. A figura do eterno sedutor é um padrão de personalidade caracterizado por uma pessoa narcisista, sem quaisquer escrúpulos, manipuladora, amada e odiada, e que faz tudo para conquistar.
Anarquistas do amor, ignoram a virtude e a felicidade, considerando válida qualquer arma que os ajude a conquistar o objecto do seu desejo. Os sentimentos de terceiros não são tidos em conta e apenas lhes interessa o instante de prazer e de triunfo permanente sobre a mulher que submetem, o namorado ou marido que conseguem trair e os seus congéneres com quem gostam de competir. Visam o poder nas suas relações amorosas através da sedução e da conquista, através das quais reforçam a sua autoestima e autoconfiança. Esta dissociação entre amor e sexo consiste na dificuldade de amar e de desejar simultaneamente a mesma pessoa.
Ao surgir no ambiente severo e rígido da corte espanhola da Idade Média, numa sociedade ao tempo sexualmente reprimida e rigorosa, este estereótipo masculino parece vir reclamar a filosofia da humilhação da virtude, desbaratando o amor e o casamento. Apenas lhe interessa a vitória pessoal sobre a honra e integridade femininas, ficando bastante orgulhoso das suas habilidades com as mulheres, que lhe conferem a certeza inabalável da sua virilidade, prestígio e reconhecimento invejado.
Esta é a máscara social, pois no seu íntimo Don Juan sente-se inseguro, tímido e desvalorizado. Por essa razão, não é selectivo com as mulheres e todas lhe parecem iguais. Não as quer realmente, estas apenas lhe servem como incremento da sua auto-estima. Um mero objecto ou troféu de caça que, claramente, não pretende amar ou sequer proporcionar prazer, mas apenas submeter para acalmar momentaneamente a sua sede insaciável de poder… um tónico para a estima que lhe falta em si mesmo. Como amar, se não se ama nem a si mesmo?
O sedutor compulsivo
O sedutor compulsivo vive assim agarrado à necessidade de se afirmar através da conquista, à qual associa a capacidade de impressionar. Quando este comportamento obsessivo está patente, sem outro fim que não seja a conquista per se, é sinal de que existem raízes que vêm da infância. Uma relação materna disfuncional pode constituir a causa para que um homem converta a simples sedução em procura compulsiva de um ideal de mulher que não existe. Nestes casos, verifica-se que a figura materna deslocou todo o seu amor para o filho, colocando-o no plano de um companheiro emocional (sem que isso implique qualquer conotação sexual). Porém, o papel desta mãe é, em geral, superprotetor e incapacitante, sendo que as suas necessidades emocionais limitam e anulam as do filho, criando neste um sentimento de culpabilidade quando se confronta com o facto de não poder suprir as expectativas maternas. Tendencialmente, o filho vai estruturar uma personalidade cheia de medos e frustrações. Na idade adulta, quando se exige uma relação de igualdade e de reciprocidade, o sedutor andará, antes, na demanda de uma companheira-mãe, que o ame incondicionalmente, sem ter que dar nada em troca.
Em termos psicanalíticos
Em termos psicanalíticos, a Síndrome de Don Juan pode refletir um Complexo de Édipo mal resolvido, caracterizado pela fixação sexual ou libidinal inconsciente na figura materna, o que implica a busca frenética na idade adulta da mulher ideal que sempre comparam com a mãe. Existe, assim, uma busca da figura materna em toda a relação e, quando a conquista perde o interesse da sedução, retomam essa busca da mulher perfeita, ou seja, da Mãe.
Pode também acontecer o contrário, ou seja, que estes homens tenham tido uma mãe que não supriu as suas necessidades afectivas e se mostrou abandónica na infância. Neste caso, há um receio de novos abandonos na relação com as mulheres, pelo que o abandono precoce que fazem, da relação que fomentaram, é uma tentativa defensiva de evitar serem ‘novamente abandonados’. Podemos ver nos mesmos um comportamento fóbico, que mais não é do que um mecanismo de defesa contra os contactos afetivos duradouros.
No fundo, existe nos mesmos uma dificuldade de entrega emocional na relação afetiva e algum sadismo na humilhação frequente do sexo oposto. No geral, comportam-se como eternos adolescentes mimados, onde amiúde existe uma grande dependência da mãe. O envolvimento sexual acaba por ser mais fácil do que o envolvimento emocional, pese embora existam bastantes dificuldades de obtenção de prazer sexual. O prazer decorre sobretudo do ‘poder da conquista’.
De ego frágil, necessitam reafirmar a sua masculinidade perante os seus pares e perante si mesmos. Parece motivá-los um desejo interior para escapar ao controlo feminino e isso traduz-se num viver entre o segredo e a mentira. Bastante sedutores, têm como alvo preferencial pessoas difíceis ou ‘proibidas’ de serem alcançadas. Após a conquista, a atração volátil desaparece, esfumaçando-se. Com uma estrutura de personalidade fria e insensível, autocentrados e egoístas, não suportam a monotonia e necessitam de uma constante estimulação e novidade compulsiva.
E as mulheres sedutoras compulsivas?
Se avaliarmos esta síndrome como uma perturbação da personalidade (devido ao desprezo pelos sentimentos de terceiros), o mesmo pode apresentar-se tanto em homens como em mulheres, apesar de parecer ser bastante mais evidente no género masculino. Por outro lado, os casos femininos tendem a ser bastante mais discretos.
A sedução torna-se aditiva quando se transforma numa ‘razão de ser’, levando a uma falsa sensação de poder e segurança. A auto-estima é mantida em função da capacidade de seduzir e conquistar, já que no fundo se trata de uma ‘procura de aceitação e de valorização pessoal’.
Características do sedutor compulsivo
Disfuncionalidade familiar (sobretudo, no que diz respeito à relação com a figura materna);
Imaturidade emocional;
Baixa autoestima;
Insegurança:
Narcisismo e egocentrismo;
Vazio existencial;
Ansiedade;
Transtornos obsessivos;
Medo do compromisso;
Incapacidade para se relacionar em igualdade;
Dificuldade para se conectar com a intimidade;
Eventual homossexualidade (não assumida).
Por Lúcia da Costa Soares
Psicóloga Clínica, Psicoterapeuta, Terapeuta Transpessoal
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